terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Um olhar sobre A-CORDA


“Não há território sem um vetor de saída do território e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte” (Gilles Deleuze).

Aos meus olhos recém chegados a Cia. do Abração, nem tanto estrangeiros, no entanto, ainda não reterritorializados, assumo essa tentativa íngreme: estabelecer uma relação de conhecimentos relativos a um projeto que me envolve, não apenas intelectualmente, tendo em vista a área de pesquisa e os resultados alcançados, como de forma subjetiva e emotiva.

Essa corda que separa e que une, que possui dois lados, duas pontas. Que relativiza e torna um. Já surge como um objeto que propõe equivalência e oposição. Vejo A-CORDA como um projeto que veio inspirar novos caminhos para companhia, tendo em vista que o território só vale a partir do momento que se sai dele. A-CORDA e os elementos que o projeto trouxe para o grupo tornaram-se de fato “o estrangeiro” para esse território da companhia, já com uma busca estética própria, uma pequena pátria formada. Assim, dois elementos unidos buscando resignificação.
Estruturas físicas criando repertório, corpos pré-expressivos. Atores que desenvolveram um treino pessoal, agregando a ele novos exercícios.

Na mostra do resultado de pesquisa, apresentaram-se não apenas corpos de personagens estrangeiros que se relacionavam uns com os outros, trazendo cada um uma história que se entrelaçava e/ou se desfazia. Vi corpos de atores que não apenas executavam movimentos, não apenas calcados na fisicidade, mas que se apropriaram da técnica e se dilataram, se prolongaram além das estruturas físicas, passaram a possuir corporiedade. Sobre tudo, atores buscando corpos estrangeiros, utilizando-se de uma técnica também estrangeira, sofrida como o corpo fora do contexto de sua pátria. Não apenas corpos se distribuindo pelo espaço, mas o espaço ocupando os corpos.

Sair de seu território é se aventurar. Voltar para a própria pátria, acredito, é outro processo de reterritorialização, tendo em vista que este estrangeiro volta para suas raízes com uma bagagem cultural diferente da sua anterior. A-CORDA transpassa, transborda, é um processo contínuo, reflete-se nos demais projetos. O estrangeiro passa a não ter pátria própria, é do mundo.

“A transição é uma cultura”
(Eugênio Barba)


Naiara Luiza Bastos

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O SOBREVIVENTE

por Carolina Mascarenhas


Um pouco de poesia, para o nosso vazio ficar mais cheio de belo.


O SOBREVIVENTE

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)

Carlos Drummond de Andrade