Enxergo na cegueira conveniente, a utilidade e a vantagem em não enxergar. Na lenda de Lady Godiva o povo não enxerga o desfile “erótico” da rainha pela conveniência que o ato traz, a baixa ou anulação dos impostos, impostos pelo rei. Relembrando, a lenda diz que a bela Lady Godiva teve pena do povo de Coventry, que sofria com os altos impostos do marido. Lady Godiva apelou a ele tanto que ele concedeu com uma condição: que ela cavalgasse nua pelas ruas de Coventry. Ela aceitou a proposta e mandou todos os moradores se fecharem em suas casas até que ela passasse. Diz a lenda que somente uma pessoa ousou olhá-la, e ficou cego por conseqüência. Ao final da história, Leofric retira os impostos mais altos assim mantendo sua palavra. Também vantajoso se torna o ato de não ver uma vez que se corre o risco de ficar cego literalmente pela desobediência ao rei ciumento. O cidadão que ousou espiar o desfile não pensou em toda inconveniência do fato, ele poderia lesar a todos anulando o ato heróico da alteza. Será que o este cidadão preferiu a inconveniência para não ser conivente? Fingir que não vê e assim acabar encobrindo aquilo que está a vista de todos. A conivência pode ser observada nos súditos do conto “A roupa do rei”, onde todos afirmavam ver o que não viam. O conluio dos tecelões mal intencionados envolve a todos que encobrem a má ação de deixar o rei exposto ao ridículo. No entanto, revelar a verdade revelaria a falta de inteligência do apontador, somente os tolos não veriam a linda roupa confeccionada com tão nobre tecido.
Os dois exemplos citados trazem em si a nudez impossível de se esconder, aquilo que somente um verdadeiro cego não veria. Por isso, vale a máxima de que pior cego é aquele que não que enxergar. E, na sociedade contemporânea, com tantos meios de informação e com a total liberdade de opinião e expressão, parece-me que os cegos satisfazem-se em achar que vêem e a maioria dos que vêem fingem ser cegos. Em nossa sociedade, por exemplo, existem mais dos que acham que vêem ou dos que preferem ser cegos? Um texto internético de Dom Bertrand de Orleans e Bragança, tetraneto de dom Pedro 1º, me fez pensar um pouco mais sobre isso tudo e o copio e colo aqui, não pela opinião ou posicionamento político, mas para exemplificar em algo próximo e concreto o que reflito e porque pode ser que ajude nesta observação (ou não observação):
O Brasil e os cegos
BERTRAND DE ORLEANS E BRAGANÇA
A artificial popularidade de Lula parece ter se esvaído, de um momento para o outro, como um encantamento que perde sua sedução
O BRASIL vive uma conjuntura inesperada e que causa perplexidade. Fatores até contraditórios parecem conjugar-se, gerando situações ora confusas, ora auspiciosas, ora trágicas, ora reveladoras.
Dir-se-ia que uma misteriosa mão revolveu o tabuleiro de xadrez da conjuntura político-social brasileira, derrubando certas peças, trocando outras de lugar, fazendo com que umas perdessem seu sentido e outras se sentissem confusas e desnorteadas.
Sou obrigado a concordar com o deputado Fernando Gabeira -em cujos antípodas ideológicos me encontro- quando escreveu, há dias, nesta Folha: "Há algo no ar além dos poucos aviões de carreira. É uma sensação de que o governo, diante da crise, deixou de fazer sentido, deixou de dizer coisa com coisa. As pessoas não acreditam ainda no que estão ouvindo" ("A bruxa na cabeça", 28/7, pág. A2).
Por que afinal o governo "deixou de fazer sentido"? E terá sido apenas o governo? Relembro aqui razões pertinentes, já exaustivamente apontadas: a generalizada incompetência; o aparelhamento do Estado pelo PT e partidos aliados; um governo voltado para a autolouvação e a propaganda; a submissão de todos os atos políticos a uma ideologia.
Há, entretanto, a meu ver, uma razão mais profunda que vejo pouco mencionada ou referida sem o devido destaque. Obcecados por uma ideologia utópica, com tintas de fanatismo, Lula, seus colaboradores e conselheiros mais próximos muito falam do povo, mas pouco conhecem dele. O que se nota em suas convicções -melhor diria, em suas crenças- e modos de atuar é um desconhecimento fundamental da índole de nossa gente.
Inúmeros historiadores, sociólogos e analistas de renome se debruçaram e escreveram sobre ela. Sirvo-me aqui das palavras de Plínio Corrêa de Oliveira, um dos pensadores e homens de ação que, a meu ver, com maior acuidade discorreram a respeito dos traços de alma, dos sentimentos, da mentalidade de nosso povo:
“O povo brasileiro se destacou desde as origens, por seu caráter ameno, afetivo e cordato. Ademais, habituou-se ele a considerar com otimismo as várias crises econômicas por que tem passado. Ele confia em Deus (“ Deus é brasileiro", afirma um velho dito popular). (...) Com "jeitinho" (o "jeitinho" é uma instituição nacional), bonomia e paciência -julga a imensa maioria dos brasileiros- tudo se arranjará. O brasileiro é infenso à ansiedade. Detesta rixas. Cuida pacatamente de si e de sua família e considera com um olhar algum tanto desinteressado e cético a política e os políticos (...). Em comparação com o imenso contingente populacional assim disposto, publicistas, políticos etc. representam uma minoria que por certo faz ruído, pois está nos postos-chaves de onde o ruído se difunde sobre as multidões. Mas essas multidões constituem um povo que pouca atenção dá a tal ruído" ("Sou Católico: Posso Ser contra a Reforma Agrária?", Vera Cruz, 1981, pp. 57, 5.
Talvez por esse motivo a tão simbólica vaia do Maracanã tenha deixado surpreso e desorientado o presidente Lula e desconcertados seus assessores; talvez por esse motivo políticos petistas e aliados se tenham dedicado a exercícios abstratos e especulativos sobre os motivos da vaia em vez de se voltarem para o país profundo, que está mudando de modo irreversível.
A artificial popularidade de Lula, mantida à custa de uma fabulosa máquina de propaganda, regada generosamente a números de pesquisas, tratada com uma cuidadosa ausência de oposição, parece ter se esvaído, de um momento para o outro, como um encantamento que perde sua sedução.
O terrível e trágico acidente da TAM, dias depois, teve o condão que, paradoxalmente, têm certas tragédias, de operar um choque salutar nos que arrastavam indolentemente sua insatisfação. Num clarão de dor e de morte, aos olhos de grande parte dos brasileiros se tornaram patentes o descomunal desastre e a imensa tragédia histórica para a qual o chamado lulo-petismo arrasta a nação.
Pela primeira vez, das camadas profundas da sociedade surgem manifestações de inconformidade ativa, de um descontentamento que há muito germinava e só o lulo-petismo parecia não levar em conta, em sua marcha utópica por cima do Brasil.
Afinal, só isso explica as reações absurdas como a tristemente célebre frase da ministra Marta Suplicy; o escárnio da afirmação do ministro Guido Mantega; o sumiço do presidente Lula ante uma tragédia sem nome; os gestos desqualificados de Marco Aurélio Garcia; as piadas presidenciais e as gargalhadas na posse do novo ministro da Defesa. Parecem não saber avaliar o desgaste profundo de seu projeto de poder nas mentalidades. E o desgaste das multidões é um dos fenômenos mais difíceis de ser revertido. Afinal, não se caminha impunemente ao arrepio de um povo, sobretudo quando sobre esse povo pairam os desígnios e a proteção da virgem Aparecida.
Mas, para o lulo-petismo, tudo se reduz a uma disputa eleitoral, tudo é golpismo. O pior cego é aquele que não quer ver: e o Brasil está aí, aos olhos de todos... menos dos cegos.
Não tenho certezas e me abro às críticas, mas fico pensando hoje, onde estão os nossos Reis Nús escondidos pelos que vêem e fingem ser cegos, e onde estão as Ladys Godivas desfilando sobre cavalos aos nossos olhos, observada por detrás das janelas fechadas dos cegos que preferem achar que sabem o que está acontecendo. Acredito que os videntes estejam, em sua maioria, na arte que constantemente lava seus olhos ao invés de procurar lentes de aumento. E no demais só vejo conivência e conveniência, e terminar só vendo é para forçar a ironia das palavras.
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