sábado, 26 de julho de 2008

Sou um estrangeiro nesse mundo - Gibran Khalil Gibran

Sou um estrangeiro, e há na vida do estrangeiro uma solidão pesada e um isolamento doloroso. Sou assim levado a pensar sempre numa pátria encantada que não conheço, e asonhar com os sortilégios de uma terra longínqua que nunca visitei.
Sou um estrangeiro para meus parentes e amigos. Quando encontro um deles, penso:"Quem é ele? Onde o encontrei? Que me une a ele? Por que me aproximo dele e o freqüento?"
Sou um estrangeiro para minha alma. Quando minha língua fala, meu ouvido estranha-lhe a voz. Quando meu Eu interior ri ou chora, ou se entusiasma, ou treme, meu outroEu estranha o que ouve e vê, e minha alma interroga minha alma. Mas permaneço desconhecido e oculto, velado pelo nevoeiro, envolto no silêncio.
Sou um estrangeiro para o meu corpo. Todas as vezes que me olho num espelho, vejono meu rosto algo que minha alma não sente, e percebo nos meus olhos algo que minhas profundezas não reconhecem.
Quando caminho nas ruas da cidade, os meninos me seguem, gritando: "Eis o cego,demos-lhe um cajado que o ajude." Fujo deles. Mas encontro outro grupo de raparigas que me seguram pelas abas da roupa, dizendo: "É surdo como uma pedra. Enchamos seus ouvidos com canções de amor e desejo." Deixo-as, correndo. Depois, encontro um grupo de homens que me cercam, dizendo: "É mudo como um túmulo, vamos endireitar-lhe a língua." Fujo deles com medo. E encontro um grupo de velhos que apontam para mim com dedos trêmulos, dizendo: "É um louco que perdeu a razão ao freqüentar as fadas e os feiticeiros."
Sou um estrangeiro, e já percorri o mundo do Oriente ao Ocidente sem encontrar minhaterra natal, nem quem me conheça ou se lembre de mim.
Acordo pela manhã, e acho-me prisioneiro num antro escuro, freqüentado por cobras einsetos. Se sair à luz, a sombra do meu corpo me segue, e as sombras de minha alma maprecedem, levando-me aonde não sei, oferecendo-me coisas de que não preciso, procurando algo que não entendo. E quando chega a noite, volta para casa e deito-me numa cama feita de plumas de avestruz e de espinhos dos campos.
Idéias estranhas atormentam minha mente, e inclinações diversas, perturbadoras,alegres, dolorosas, agradáveis. À meia-noite, assaltam-me fantasmas de tempos idos. E almas de nações esquecidas me fitam. Interrogo-as, recebendo por toda a resposta um sorriso. Quando procuro segura-las, fogem de mim e desvanecem-se como fumaça.
Sou um estrangeiro neste mundo. Sou um estrangeiro, e não há no mundo quem conheça uma única palavra do idioma da minha alma.
Caminho pela selva inabitada, e vejo os rios correrem e subirem do fundo do vale aocume da montanha. E vejo as árvores desnudas se cobrirem de folhas, e florirem, e frutificarem, e perderem suas folhas num só minuto. Depois, suas ramas caem no chão e se transformam em cobras pintalgadas.
E as aves do céu voam, pousam, cantam gorjeiam e depois param, abrem as asas eviram mulheres nuas, de cabelo solto e pescoços esticados. E olham para mim comsensualidade. E estendem suas mãos brancas e perfumadas. Mas, de repente, estremecem e somem como nuvens, deixando o eco de risos irônicos.
Sou um estrangeiro neste mundo.
Sou um poeta que põe em prosa o que a vida põe em verso, e em versos o que a vidapõe em prosa. Por isto, permanecerei um estrangeiro até que a morte me rapte e me leve para minha pátria...

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O SOBREVIVENTE

por Carolina Mascarenhas


Um pouco de poesia, para o nosso vazio ficar mais cheio de belo.


O SOBREVIVENTE

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)

Carlos Drummond de Andrade