Na semana passada, recebemos o grupo paraguaio Hara Teatro, dirigido por Wal Mayans e foi um encontro delicioso, com resultados maravilhosos. Começando por conhecer pessoas que se dedicam a mesmos ideais e oferecem seu tempo, suas vidas jovens a esta quimera que chamamos teatro. O Wal já conhecia, na minha aventura de viver palco em Asunción, até compartilhamos alguns intentos juntos, mais vim para o Brasil, antes mesmos de concretizar desejos, (jovem, tinha a presa como parceira; levei tempo para entender que alguns sonhos nos cobram a vida, para realizá-lo). Assim já sabia que esse homem baixinho e entroncado tinha uma longa estrada nas costas e isto lhe dava a leveza de uma pluma, quando preciso, e a habilidade de um maestro, na hora de guiar-te no trabalho. Ele tem uma aparência rígida, mas na verdade é paizão coruja, um ser humano com todas as letras.
No grupo, configurado, na sua maioria, por pessoas extremamente jovens, podemos perceber a disciplina, em um trabalho que exige muita precisão, mergulhados na técnica, explorando seus limites pessoais. São essas potências que desejamos ver com o tempo, mais maduros, e torço por isso. Ressalta o trabalho já mais apurado da Raquel, que, confesso, não tenho o gosto pelo estilo, ou pela estética, porém, é maravilhoso vê-la no palco. Assim, também é reconhecível a delicadeza e a força do trabalho do Hilário, especialmente nas demonstrações que deram no dia seguinte.

O espetáculo Soria é a representação fiel de uma Asunción mergulhada na dicotomia de sua identidade, com influência indígena não totalmente assumida, de uma língua quase esquecida, mas, sempre permeada por seus mitos e estórias, e espelhada em ritos com valores contrapostos, de uma metrópole aldeia. È o discurso de uns corpos da cidade, fazendo falar seus ancestrais, misturados a Rok and rol, com banda ao vivo, interagindo com atores bailarinos. É um excelente lembrete dos textos transcritos por dedicados etnólogos como Píer Clastres, Leon Cadogan, Chase Sardi e Mito Sequera, onde os velhos Xamans previam o cataclismo de inversão de valores, instando a não transigir a seus mitos fundamentais, alicerçado na essência da alma, a palavra. O valor da palavra. É um espetáculo de impacto onde no final o público precisa ganhar fôlego, antes de explodir em aplauso.
O que me chamou a atenção, além de tudo isso, é o que, de alguma maneira, representou este fato, esta vinda a Curitiba, primeiro para quem assistiu e depois os comentários que ficaram ecoando. O Paraguai, nesta capital de estado, não é notícia. Sabe-se nada ou pouco sobre seu cotidiano. A visão que se tem não ultrapassa da bagunça de Cidade del Este, sinônimo de contrabando, tráfico, ilegal, falsificado. Agregam-se, a isto, os resultados da pesquisa de corrupção, mundo afora, que coloca o Paraguai entre os mais corruptos do mundo. Não é raro encontrar alguém que se aventurou, passando a fronteira de carro e no mínimo suou frio nas mãos dos policiais de trânsito, sendo obrigado a pagar uma "una ayudita para la cerveza", mesmo estando completamente dentro da regra legal. Esse é o país que se vende e é assim que se vê. Esse é o estigma que constrói o imaginário da população desta cidade.
Então, o espetáculo Soria nos acorda para um outro Paraguai, a descobrir. Convida-nos a conhecer um país que se reinventa, que tem uma produção simbólica, readequando sua própria identidade. Há uma população viva que quer se reinventar, apesar dos sessenta e tantos anos de governo de um só partido, mais da metade dentro de uma ditadura despiedada.
Após a partida do grupo Hara fica a quase certeza de que há de haver mais do que sabemos desses hermanos, além, de seus governantes irresponsáveis, além do aspecto apenas folclórico da suas "harpas e guaranias". Nada contra, mas essa é uma identidade construída num paraguai agrícola, que hoje tem uma população majoritária urbana. Essa é a curiosidade instigante que nos deixa esta experiência. Espero que não seja um ato fortuito, isolado e que de fato se construam políticas públicas para um dia, o Paraguai poder ser notícia nestas terras. E que seja pela sua humanidade vibrante e persistente e não pelos desvios que a obnubila. Fico torcendo para haver mais loucos como Wal Mayans, que emprestam sua alma para a tarefa de construir territórios simbólicos e ao final nos mostra quantas similaridades partilhamos, apesar da nossa diferença. Como ele diria: códigos universais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário