quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Ponto de vista da Japonesa

Partir é intrínseco a viver. Partir na busca de existir sendo plena. Ser plena é doar-se sem medos, sem tantas reservas. Partir movida pelo desejo de compartilhar uma vida nova noutro lugar.
As lembranças que ela gostaria de apagar, temem em seguir viagem. Lembranças de um passado que insiste em ser presente confundindo o instante – passado, presente e futuro se misturam criando uma realidade impar, tornando-a inacessível ao olhar do outro. Incomunicável silêncio.
A ansiedade da partida marca o ritual de preparação. Ela se prepara com todo cuidado e esmero para a viagem e seus possíveis encontros. Todos os rituais que constrói na preparação desses encontros, alimentam seu espírito de sonhos belos, inflamando e ao mesmo tempo retardando esses encontros, como se a preparação fosse mais importante que o próprio encontro. O ato de preparar-se é tão imenso que de tão grande, pesa e de tão pesado, só quem é muito leve pode suportá-lo.
A viagem é longa, difícil, marcada por obstáculos que ela transpõe pouco a pouco embalada por seus devaneios.
O frisson do 1º encontro deixa tudo delicadamente intenso e verdadeiro. Ela traz consigo flores e pequenos presentes que anseia compartilhar. A realidade do 1º encontro não casa com a fantasia da preparação que é ela própria. Seu perfume nem é notado e suas preciosas flores, pisoteadas. Cambaleante segue viagem.
A decepção deste encontro anula seus sonhos e, portanto, ela própria. Mais um desencontro, mais um desmaio, mais devaneios, agora, enquanto forçosamente dorme.
Alguém amparou sua queda, silenciosamente cuidou dela, alimentando seu espírito. Novamente o ritual de preparação se inicia impulsionando sua viagem, transformando cada trecho sinuoso e aparentemente intransponível, em algo único e insubstituível, como se todos os obstáculos tivessem sido especialmente preparados pra que ela os transpusesse. Transpor a dor de sua solitária preparação. Preparação que está na raiz de sua existência, na gênese de sua criação cravada no seu DNA. Como superar essa ancestralidade marcada pela resignação feminina?
Novos encontros com essa mesma pessoa que a amparou vão acontecendo, culminado na delicadeza da troca, fazendo-a momentaneamente plena. Momentaneamente, afinal, cada um segue seu caminho. E o seu caminho é apenas seguir, seguir para sonhar, sonhar para viver na preparação de construir, solitaria e profundamente, o melhor de si para poder trocar e novamente seguir, já não importa mais pra onde. Seu sentido está em ser e não mais em estar. Quem sabe sendo, ela não possa finalmente transformar um desencontro num encontro.

“Esse ar solto, esse vento que me bate na alma da cara deixando-a ansiada numa imitação de um angustiante êxtase cada vez novo, novamente e sempre, cada vez o mergulho em alguma coisa sem fundo onde caio sempre caindo sem parar até morrer e adquirir enfim silêncio. Oh vento siroco, eu não te perdôo a morte, tu que me trazes uma lembrança machucada de coisas vividas que, ai de mim, sempre se repetem, mesmo sob formas outras e diferentes. A coisa vivida me espanta assim como me espanta o futuro. Este, como o já passado, é intangível, mera suposição”.

Clarice Lispector

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O SOBREVIVENTE

por Carolina Mascarenhas


Um pouco de poesia, para o nosso vazio ficar mais cheio de belo.


O SOBREVIVENTE

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)

Carlos Drummond de Andrade