quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

POR ENQUANTO, A CORDA.

No processo de criação da 1° etapa de A-Corda, dentro do projeto de pesquisa em linguagem teatral da Fundação Cultural de Curitiba, o foco temático trabalhado foi o ser estrangeiro. Um tema abrangente quando nos aprofundamos no assunto e damos asas aos devaneios. Teorias a parte, outro ponto fundamental deste processo foi a preparação física conduzida e dirigida por Wal Mayans, diretor paraguaio criador do Teatro Primigênio, fundamentado na antropologia teatral de Eugênio Barba, com quem estudou e trabalhou e desenvolve pesquisa até hoje.

Ao estudar o tema estrangeiro algumas delimitações foram necessárias e fomos optando por falar do estrangeiro de lugar, de língua e de si mesmo. Apresentar estas idéias e desenvolver cenas acerca disto foi o desafio de um ano de trabalho diário. O longo processo se torna curto quando pensamos que sua pesquisa ainda não acabou. Uma linguagem não se desenvolve em um ano de pesquisa, é um processo continuado e muito mais longo. Como todos os processos desenvolvidos pela Cia do Abração, este também se divide em fases teóricas e práticas, e também neste pode se afirmar que todo o material levantado em mesa deu base firme à delimitação que encontramos ao foco que escolhemos. Falar dos caminhos, das escolhas, dos encontros e desencontros na vida do estrangeiro. Estrangeiro de um país interior e exterior.

Michel Foucault e “A Verdade e as Formas Jurídicas”, Affonso Romano de Sant'Anna e “A Cegueria e o Saber”, Eugenio Barba, arte terapia, arte conceitual, arte identidade, arte educação, culturação e aculturação, entre outros tantos assuntos, rodaram pelas “mesas” e se embrenharam nos corpos criadores. O conceito “corpo criador” é somente para abranger a totalidade dos sentidos e todas as formas de cognição e expressão de que se utiliza o pesquisador dentro deste processo.

De Foucault a maior relevância além do nó que deu nessa corda, foi o retrato de nossa contemporaneidade com seus jogos de poder e formas de controle social. Affonso Romano exerce a mesma função, porém com mais delicadeza artística em sua retórica, o que desata o nó anterior, pelo menos para os corpos criadores em questão. Ouso brincar com os termos abordados e me exponho em inventar uma paráfrase que pode ir contra tudo o que se discutiu, dependendo do ponto de vista: Somos cegos de nossas verdades e formas. E o nosso saber se torna controlado pelas mesmas formas e verdades.

Afirmo que Affonso Romanno de Sant’ana foi a primeira corda que agarramos e que inspirou profundamente quem aqui escreve, por isso destaco alguns pontos importantes em nossas mesas. Ao tratar de arte conceitual em “O sem fim do fim da arte” e o “Circo e o ciclo das transgreções”, lembro as falas sobre a fagocitação da arte pela filosofia e a banalização da arte, assim com a própria arte que banaliza, apontando Darko Maver e “seus corpos que já não criam” como exemplo. Em “Da Cura do real pela Ficção” as questões da arte terapia, arte tratamento e a compreensão do sensível e as formas sensíveis de tratar. Destaco a frase “Reescrever a vida alheia alterando o porvir” de Romanno, em paralelo com nosso intuito de entrevistar nossos vizinhos e levá-los a cena, não como terapia, mas como arte. E também a frase de Clarice Linspector, citada no mesmo capítulo de “A Cegueira e O Saber”, “Uma pessoa pode encalhar numa palavra e perder o resto da vida” rememorando a entrevista dos colegas Blás e Val com uma vizinha no seu mundo de estrangeirice e instrangeirice. Ainda passo pelas letras que modificam vidas em “Fixando palavras em Mahakeshi” e o hibridismo que deve ter inspirado o colega Simão em “Hércules e os travestis” com sua meia mulher dentro dos másculos. En Passant reavivo a não religiosidade de Deus diante dos desconcertos do mundo.
“Diante dos desconcertos do mundo consertar a orquestra de desconcertos”
(Romanno)

Já que apresentei mais acima o termo corpo criador, que não é invenção minha, resolvo ressaltar como se prepara o mesmo dentro do processo em questão: Pitadas de Yoga, pilates, escalada, consciência corporal, dança criativa, improvisação, tai chi chuan, respiração, tecido acrobática, corda bamba, trapézio, acrobacias de solo e aéreas, voz, voz e mais voz, batucadas e doses generosas de teatro físico baseado em Barba, dentro da Primigenia Teatral de Mayans. Uma receita que ainda não foi levada ao forno, está crescendo e ganhando consistência.

Um grande acréscimo foi a vindo Grupo Hara de teatro do Paraguai, dirigido por Wal Mayans para Curitiba com seu espetáculo Soria, que se apresentou no mês de junho no espaço TEUNI da UFPR. Em uma iniciativa de intercâmbio Cultural entre as culturas destes dois países tão próximos e tão ricos em diferenças culturais. Próximos principalmente dentro da própria Cia do Abração que tem em um de seus integrantes, Blas Torres, a dupla nacionalidade dos países citados. Dupla nacionalidade conseguida a duras penas no decorrer do processo de A Corda em meio a todas as pesquisas de estrangeiros e instrangeiros que realizávamos. Nada mais que um material inspirador para a pesquisa e a criação.

Voltando ao Hara Teatro, a convivência com estrangeiros reais, sem domínio da língua portuguesa e num portunhol nem sempre compreensivo fez a realidade se desdobrar e tornar material os devaneios (lembrando Selma Baptista em “O Banho”). Desdobrou também em mais um intercâmbio com a ida do Grupo da Cia do Abração, com dois espetáculos, “O Banho” e “Um Mundo debaixo do Meu chapéu” para Assunção no Paraguai. Concretizando o ser estrangeiro e suas palpáveis questões, nos corpos criadores de A corda.

Este texto ainda não está concluído e creio que sobre o que apontei até aqui preciso muito mais aprofundamento. Mas ouso postá-lo assim mesmo até para cumprir prazos sobre os quais nos responsabilizamos. Em uma breve conclusão brinco seriamente dizendo que A Corda merece uma tese.

Em breve concluirei e aprofundarei as idéias apresentadas.

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O SOBREVIVENTE

por Carolina Mascarenhas


Um pouco de poesia, para o nosso vazio ficar mais cheio de belo.


O SOBREVIVENTE

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)

Carlos Drummond de Andrade